Segunda-feira
Mt 7,1-5: Não julgueis e não sereis julgados.
O cisco 110 olho alheio
- Não condenar os outros. A partir do capítulo 7 de Mateus, que hoje começamos, o discurso da montanha parece tomar uma nova direcção, orientado mais em particular para os discípulos, isto é, para os membros da comunidade cristã de Mateus e de todos os tempos. “Não julgueis e não vos julgarão… A medida que usardes usá-la-ão .. Como podes dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, tendo uma trave no teu?”.
O contraste exagerado entre o cisco no olho alheio e a trave no próprio pode reflectir um provérbio popular de então, pois a rápida observação das faltas dos outros, em contraste com a tolerância para as falhas do próprio carácter, é tema comum em muitos adágios de todas as culturas e idiomas.
Com a lição do evangelho de hoje Jesus pretende chamar a atenção dos seus discípulos para um perigo que os ronda: Constituirem-se em elite, crerem-se superiores e separarem-se dos outros, como os fariseus. Isso é o significado de fariseu: separado.
O sentido que tem aqui o verbo “julgar” não é simplesmente fazer- -se uma opinião, algo que dificilmente poderemos evitar, mas julgar duramente, ou seja, condenar os outros, como se diz na passagem paralela de Lucas: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados” (6,37).
- Três razões para não condenar. Não devemos julgar e condenar os outros por muitas razões, entre outras por estas três:
1a – O julgamento pertence a Deus e não a nós, porque só Deus conhece a fundo o coração do homem. Constituir-se em juiz dos outros é uma ousadia irresponsável. Deus aceita-nos e ama todos tal como somos, e olha-nos com amor de Pai que dissimula as faltas dos seus filhos, a quem vê através do seu próprio Filho, Cristo.
Se anteriormente, ao longo do discurso da montanha, Jesus falou do perdão das ofensas e do amor inclusivamente ao inimigo, para tentar aproximar-nos ao menos um pouco da perfeição de Deus, agora está apontando à imitação da sua misericórdia. Como diz o livro da Sahedoria, Deus compadece-se de todos e corrige os que caem para que se convertam e acreditem n’Ele (1 l,23ss).
2a – A medida que usarmos com os outros usá-la-ão connosco. Isso
não quer dizer que Deus – a quem não se menciona no texto por respeito – nos julgará com a nossa medida injusta e impiedosa. Esse não é o seu modo de proceder. Mas certamente quem age assim com os outros expõe-se a um julgamento mais severo para si mesmo.
Deus teria, digamos, duas medidas para o seu julgamento: uma de justiça, outra de misericórdia. Ele medir-nos-á com aquela que nós utilizarmos com os irmãos. E a mesma lição da parábola do devedor insolvente que é perdoado e não perdoa, ou a contida na petição do Pai nosso: Perdoa as nossas ofensas… O que condena o irmão auto- -exclui-se do perdão de Deus e cai sob a jurisdição da lei, que não deixará de o acusar e condenar como imperfeito que é.
3a – Todos somos imperfeitos, tanto e mais que os outros, ainda que, julgando-os com superioridade, os desprezemos. Tal atitude, desprovida de amor, provém da nossa própria cegueira que nos impede de ver os nossos defeitos. Manter conscientemente tal postura é hipocrisia astuta, cujo modelo no evangelho são escribas e fariseus.
É muito velho o costume de criticar os outros; assim pensamos jus- tificar-nos a nós como melhores. Mas a experiência demonstra que os mais críticos, os que julgam ser perfeitos, saber tudo e ter a melhor solução para qualquer problema, costumam ser os que menos fazem e levam aos outros.
Um olhar ao espelho, uma vista de olhos à nossa pequenez e insignificância, à nossa “trave” no olho, minimizará sem dúvida as falhas dos outros e far-nos-á mais tolerantes e acolhedores, pensando que os outros também têm que suportar-nos a nós. Conhecer as nossas próprias limitações, admiti-las e aceitá-las ensinar-nos-á a saber estar e viver com os outros. Assim caminharemos em verdade e simplicidade, com ânimo de companheirismo, tolerância e compreensão para com os outros sem os condenar.
Se Deus é optimista a respeito do homem e o ama apesar de tudo, o discípiulo de Cristo há-de ser o mesmo em relação aos seus irmãos. Este é um caminho mais seguro para a realização e a felicidade pessoal do que o engano da presunção.
Bendito sejas, Senlior Jesus. Tu nos disseste:
Não condeneis os outros e não sereis condenados.
Felizes os misericordiosos que desculpam, compreendem e aceitam o irmão tal como é, porque assim c o proceder de Deus connosco.
Cura-nos radicalmente da nossa hipocrisia
que vê o cisco do próximo e dissimula a trave própria.
Dá-nos, Senhor, olhos puros para ver o bem, isto é, a tua imagem, no rosto do irmão, para acreditar nos outros e para amar a vida com um coração grande como o teu. Amen.
Terça
Alt 7,6.12-14: Várias máximas de Jesus.
A porta para a vida
- Três máximas de Jesus. O texto evangélico de hoje reúne três máximas independentes de Jesus sobre as coisas santas, a regra de ouro e a porta estreita.
- “ – Não profanar as coisas santas: “Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos porcos; pisá-las-iam e logo se voltariam para vos despedaçar”. Talvez Jesus esteja a repetir um adágio O cão e o porco eram animais impuros para os judeus. As coisas santas podem ser os alimentos santificados pelo culto, ou a doutrina do evangelho e do Reino. É difícil precisar quem são essas pessoas não merecedoras das coisas santas; pode referir-se aos judeus hostis, como escribas e fariseus, ou, menos provavelmente, aos pagãos.
2.3 – Rcqra de ouro, assim chamada porque resume todo o ensinamento moral da lei no amor que procura o bem do próximo como o próprio: “Tratai os outros como quereis que eles vos tratem; nisto consiste a lei e os profetas”. É uma norma que tem paralelo tanto no judaísmo como nas antigas literaturas. A mais conhecida é a sua forma negativa, atribuída ao rabino Hilel (20 a.C.): “Não faças a outro o que não queres para ti. Isto é a lei; o resto é comentário”.
- a – Porta estreita que leva a vida: “Entrai pela porta estreita. Larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos entram por eles. Que estreita é a porta e que apertado o caminho que leva à vida! E poucos os encontram”. Em Lucas esta máxima é a resposta de Jesus a uma pergunta que lhe é feita sobre se são poucos os que se salvarão (13,23). Pergunta que está ausente em Mateus para manter a continuidade artificial do discurso da montanha. A máxima reflecte a conhecida doutrina bíblica e sapiencial dos dois caminhos, que se repete na literatura apostólica, por exemplo na Didaché.
Alguns autores dão a esta máxima um valor ético: Entrar pela porta certa é produzir frutos, cumprindo a vontade do Pai mediante a prática da palavra de Jesus. Outros preferem uma interpretação mais directamente cristológica: É “um chamamento para seguir Cristo, particularmente Cristo sofredor, com todas as consequências morais e espirituais que esta obediência encerra. Esta interpretação está avalizada por todo o conjunto do evangelho no que tem de mais essencial: as chamadas ao arrependimento, à fé, a seguir Cristo” (P. Bonnard).
- A porta para a vida. Trata-se, pois, do caminho da cruz que conduz à porta apertada que dá passagem para a vida no reino de Deus. O proprio Jesus e essa porta para a vida: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será saho” (Jo 10,9).
Perante a permissividade socio-moral de hoje em dia, a “porta estreita” de Jesus não é mpralismo intransigente, mas responsabilidade e lucidez dos que se esforçam por ser fiéis a Deus e aos princípios evangélicos: solidariedade, fraternidade e serviço ao irmão, em vez de egoísmo, agressividade e violência; controlo do consumismo em vez de idolatria do dinheiro e dos bens materiais; assimilação, enfim, do programa de santidade que Cristo expõe no discurso da montanha, cuja cobertura são as bem-aventuranças e cujo fundamento e motivação é a santidade de Deus a quem servimos: Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito.
A chamada de Deus à santidade é para todos; vocação comum, embora diferenciada; universal, mas piuralista. Tender para a santidade cristã não é algo facultativo e opcional, reservado somente a alguns que consagram a sua vida a Deus e constituiriam uma classe aristocrática ou elite de cristãos de primeira categoria frente à grande massa de plebeus. Não; todo o discípulo de Cristo, e cada um segundo o seu estado, situação e carisma próprio, é chamado ã santidade em qualquer condição social e laborai: no matrimónio e na família, na vida consagrada, no trabalho de casa e do escritório, no hospital e no ensino, na oficina e 110 campo, por trás de um balcão, de um postigo ou de um volante.
E que fazer para sermos cristãos santos? Nada de espectacular: amar, servir e glorificar a Deus em todas as circunstâncias da vida, e amar os nossos irmãos como a nós mesmos. Nisso se resume toda a lei de Cristo, de que ele foi o exemplo mais perfeito, o caminho e a porta para a vida do Reino.
Obrigado, Pai nosso, porque nos destinaste a ser imagem de Jesus Cristo, teu Filho, de modo que ele é o primogénito entre muitos irmãos.
Ele é também a porta de entrada para a vida.
Faz-nos entender, Senhor, que a sua passagem estreita não é moralismo intransigente, mas libertação necessária antes que seja tarde e se feche a porta do Reino.
Concede-nos, Pai, responder à tua chamada: à nossa vocação cristã para a fidelidade plena.
Que o teu Espírito venha em ajuda da nossa debilidade, pedindo para nós o que nos convém. Amen.
Quarta-feira
Mt 7,15-20: Pelos seus frutos os conhecereis.
Pelo fruto se conhece a áivore
- Os falsos profetas. Partindo do aviso sobre os falsos profetas que se aproximam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes, Jesus remete-se às suas obras para os conhecer, tal como as árvores se conhecem pelos seus frutos. “As árvores sãs dão frutos sãos; as árvores más dão frutos maus”. Mediante este processo indutivo e experimental, Jesus previne contra o engano dos falsos profetas, pastores e doutores que pretendem falar à comunidade em nome de Deus. Embora a sua linguagem seja suave e mansa, o seu interior é egoísmo sem escrúpulos.
Como conhecê-los? Pela sua conduta, pelas suas obras; estas denunciam as suas verdadeiras intenções, como o fruto relativamente à árvore. Aviso e lição que são extensivos a todos os falsos discípulos de Jesus, os falsos irmãos, como se vê na passagem paralela de Lucas, em que Cristo se refere a todo o seu seguidor. Se bem que em Lucas os frutos, que em Mateus significam as obras, apontam para as palavras que brotam do coração: “O que tira do coração fala-o a boca” (Lc 6,45).
“A árvore que não dá boin fruto corta-se e lança-se ao fogo”. Esta consideração sobre o destino da árvqra má, imagem do falso profeta, liga com a pregação de João Baptista. Este denunciou o disfarce dos fariseus e saduceus: fingindo conversão diante do povo, que venerava o profeta autêntico que era João, acorriam ao seu baptismo sem vontade de se emendarem. “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira iminente? Dai o fruto que a conversão exige. O machado já está posto à raiz das árvores, e a árvore que não dá bom fruto será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,7s).
O tema dos falsos profetas teve muita importância nas primeiras comunidades cristãs, como vemos pelos escritos de então; e continua tendo hoje em dia. Como distinguir o verdadeiro profeta, o santo, o carismático? O critério evangélico de hoje será sempre de permanente actualidade e avalizado pela experiência: o fruto que produzem com a sua pessoa, palavra e conduta. S. Paulo, depois de enumerar exaustivamente as obras da carne, apresenta uma lista de nove frutos do Espírito de Deus: amor, alegria e paz, compreensão, serviço e bondade, lealdade, amabilidade e domínio de si (G1 5,22).
- Os frutos do coração. Temos de ir à raiz e ao fruto da árvore para não andarmos pela rama; isto é, temos de descer ao fundo do nosso coração para descobrir a sua maldade ou a sua bondade, a sua mentira ou a sua verdade, a sua esterilidade ou a sua fecundidade. Porque nem tudo o que brilha é ouro.
E quais são os frutos pelos quais se conhece o discípulo de Jesus? Os que assinala o discurso da montanha que vimos meditando nestes dias: a prática das bem-aventuranças, o perdão e o amor a todos, incluindo o inimigo, o dar sem pedir nem esperar nada em troca, a esmola, o desprendimento, a oração, o não julgar e condenar os outros constituindo-nos em guias improvisados, censores moralizantes e fiscais rigorosos dos outros sem ter convertido o próprio coração ou, pelo menos, tentar uma melhoria.
O autêntico discípulo de Jesus, o que é cristão e profeta de verdade, o que se sabe incorporado em Cristo pelo baptismo e pela obediência da fé, não deixará de produzir frutos maduros porque não poderá deixar de pensar, falar e actuar como Jesus. Mas da árvore doente e do coração que é um baldio agreste não podem sair senão frutos maus, palavras e acções estéreis; porque o que trazemos dentro é o que deixamos transparecer e produzimos.
Por isso, infelizmente, na palavra e actuação de tantos cristãos de número transvasa-se também o vazio interior e a imaturidade religiosa, evidentes nos seus critérios infantis e egoístas, nas suas críticas destrutivas, azedas e intolerantes, assim como no seu comportamento farisaico que os induz ao “cumpro-e-minto”, ou ainda a constituirem- -se em falsos profetas, guias cegos de outros cegos.
Necessitamos de um processo prévio de interiorização para que a qualidade e a força da seiva evengélica se note nos nossos frutos diários. Mas como, sem oração nem contacto com Deus, sem experiência do seu mistério, sem escuta e assimilação da sua palavra, sem diálogo pessoal com ele no silêncio do nosso coração?
Louvamos-te, Pai, porque Jesus nos ensinou a conhecer a fundo o nosso coração pelos seus frutos, pois o que temos dentro é o que deixamos transparecer: maldade ou bondade, mentira ou verdade, egoísmo ou amor.
Não permitas que o vazio interior do coração converta a nossa vida num árido baldio.
Que a seiva do teu Espírito dê fruto em nós mediante a prática das bem-aventuranças e a escuta da tua palavra em oração e silêncio.
Porque é no teu amor, Senhor, e na tua graça que a nossa casa tem alicerce e consistência.
Alt 7,21-29: A casa sobre rocha ou sobre areia.
Obras são amores
- Passe de entrada para o reino de Deus. O evangelho deste dia conclui o discurso da montanha, que vimos lendo desde segunda-feira da décima semana. Hoje Jesus aponta uma condição indispensável para entrar no Reino: cumprir a vontade de Deus. Este é o aval de pertença pelo qual ele nos reconhece como filhos seus e discípulos de Jesus. Não basta confessar Cristo, somente de palavra, como Senhor glorioso e ressuscitado de entre os mortos; há que juntar o cumprimento da vontade do Pai. Só assim a nossa justiça, santidade e fidelidade serão maiores que as dos escribas e fariseus, como Jesus desejava.
Para ilustrar a necessidade desta fé prática, a fé que nos salva, a fé que actua pela caridade (G1 5,6), Jesus expõe a parábola das duas casas, construídas uma sobre rocha e outra sobre areia. O verdadeiro discípulo de Cristo é o homem sábio que edifica sobre rocha, e o falso é o homem néscio que constrói a sua casa sobre areia movediça. O primeiro escuta e cumpre a palavra do Senhor; o segundo escuta-a mas não a põe em prática. Daí a sua ruína e desqualificação, porque a fé sem obras é estéril; mais ainda, está morta (Tg 2,17.20). “Obras são amores, e não boas razões”, reza o provérbio.
O “guardar os mandamentos” dos antigos catecismos continua em vigor, mas enriquecido com um maior substrato bíblico. Deus nunca começa exigindo, mas dando. O imperativo cristão funda-se no indicativo do dom de Deus, que nos torna seus filhos, homens e mulheres novos pelo baptismo em Cristo morto e ressuscitado. O primeiro é sempre o amor de Deus; depois, logicamente, torna-se urgente uma resposta pessoal mediante a conversão do coração e a fidelidade quotidiana ao Senhor.
Desta maneira uniremos fé e obras, crenças e condutas, e evitaremos um escolho frequente, causa de desprestígio e antitestemunho cristão: o divórcio entre fé e vida por parte dos que se confessam crentes e praticantes.
- O exemplo de Cristo, para evitar enganos. Cumprir a vontade de Deus supõe conhecer o querer divino. Onde encontrar um guia seguro que nos livre de ilusões e subjectivismos? Na pessoa e conduta de Jesus de Nazaré, que pôde afirmar: O meu alimento é fazer a vontade do Pai que me enviou (Jo 4,34). E no momento da prova suprema, na sua paixão, repetia: Pai, não se faça a minha vontade, mas a tua (Lc 22,42). Portanto, seguindo o exemplo de Cristo, acertaremos. Ele falou e actuou com autoridade.
No discurso da montanha que vimos em fragmentos diários, achamos um excelente resumo do seu pensamento e das atitudes básicas de quem se propõe ser seu discípulo. Assimilando o espírito das bem-aventuranças, o cristão deve ser luz do mundo e sal da terra, deve ter fome da nova justiça do reino de Deus, deve ser capaz de perdoar amando todos, inclusivamente o inimigo, e deve servir a Deus e não ao dinheiro. Assim cumpriremos seguramente a vontade divina.
A palavra de Deus é eficaz como a chuva e a neve, e penetrante como espada de dois gumes. Por isso a palavra de Deus pede uma resposta nossa; mais ainda, lê o fundo do nosso coração e julga-nos. Uma meditação diária e amorosa da palavra convertê-la-á em eixo da nossa vida cristã e em elemento constitutivo e nuclear da nossa estrutura pessoal.
Temos uma certa tendência para suavizar as afirmações categóricas de Jesus, qualificando-as de radicalismo verbal ou literário. Uma delas é a do evangelho de hoje: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos céus, inas o que cumpre a vontade de meu Pai que está nos céus”. Pode alguém inclusivamente realizar milagres em nome de Cristo e não ser reconhecido por ele como seu; porque não são os lábios, inas o coração, a vontade e as obras que contam para conseguir o passe de entrada no reino de Deus.
Não podemos hoje pôr de lado as sérias interrogações que nos coloca a palavra de Jesus: A que classe de cristãos pertencemos? Somos a casa sobre rocha ou sobre areia? Amar a Deus e os irmãos é o quadro completo da vontade divina sobre cada um de nós, que queremos construir solidamente sobre a rocha e pedra angular que é Cristo.
A tua palavra, Senhor, é eficaz e julga-nos.
Bem-aventurado o que a escuta e a cumpre!
Será casa edificada sobre rocha, árvore junto do açude.
Pois a tua lei, Senhor, é peifeita e é descanso da alma; o teu preceito é sempre fiel e instrui o ignorante, os teus mandatos são rectos e alegram o nosso caminho, a tua norma é límpida e dá luz aos olhos do cego.
Os teus mandamentos, Senhor, são inteiramente justos, mais preciosos que o ouro, mais doces que o mel.
Por isso a tua lei é a minha herança, a alegria da minha vida.
Inclina o meu coração para cumprir cabalmente a tua vontade.
Amen.
Sexta-feira
Mt 8,1-4: Se queres, podes limpar-me.
Os milagres da fé
- Um diálogo de fé. O evangelista Mateus, depois de apresentar Jesus como doutor e novo legislador no discurso da montanha (cc. 5- 7), mostra-o como curador numa série narrativa de dez milagres, agrupados por tríades que se concluem com uma passagem doutrinal (cc. 8-9). Assim completa a imagem de Cristo, profeta e homem de Deus, poderoso em obras e palavras.
O evangelho de hoje relata o primeiro milagre da primeira tríade: cura de um leproso. A cena tem lugar “ao descer Jesus da montanha”. Aproximou-se dele o leproso e disse-lhe: Senhor, se queres podes purificar- me. Jesus estendeu a mão e tocou-o, dizendo: Quero. Fica purificado! E imediatamente ficou curado da lepra (cf Mc l,40ss; Lc 5,12ss).
Importa destacar que a cura é precedida de um breve diálogo que expressa a fé do agraciado. O leproso, de joelhos diante de Jesus, chama-o “Senhor”, título que a primitiva comunidade cristã deu a Cristo ressuscitado. A fé pascal transvasou-se para a redacção evangélica, posterior aos factos narrados. Mas a fé do doente é evidente: Se queres, podes limpar-me. Isto demonstra-nos, uma vez mais, que a fé era condição indispensável para os milagres de Jesus, sobre os quais reflectimos noutra ocasião sob a perspectiva libertadora de Deus (ver quarta-feira da vigésima segunda semana).
- Condição prévia. Os milagres, mais que apoiar a fé em Cristo, brotavam da fé prévia nele. Era a fé dos que lhe suplicavam e confiavam no poder de um homem de Deus que suscitava a intervenção extraordinária da energia divina que residia na pessoa, palavra e gestos de Jesus de Nazaré. Contudo, também é certo que, num segundo momento, o milagre vinha confirmar e afiançar essa fé inicial, como anota o evangelista João depois de relatar a conversão da água em vinho nas bodas de Caná: “Jesus manifestou a sua glória e cresceu a fé dos seus discípulos nele” (2,11).
A tal ponto a fé era pressuposto essencial e condição indispensável para os milagres, que onde Jesus não encontrava fé, como sucedeu com os seus conterrâneos de Nazaré, “não podia” fazer nenhum milagre (Mc 6,5). Uma e outra vez Cristo repete às pessoas agraciadas por ele com um favor prodigioso: A tua fé te curou, a tua fé te salvou. O apóstolo Pedro foi capaz de caminhar sobre as ondas encrespadas do mar da
Galileia enquanto durou a fé; quando duvidou, começou a afundar-se. Em certa ocasião em que os discípulos tentaram curar um endemoninhado epiléptico sem o conseguirem, Jesus atribui-o à sua falta de fé, que se tivesse sido como um grão de mostarda teria bastado (Mt 17,19ss).
A fé que Cristo requeria como premissa para os seus milagres era uma fé, pelo menos inicial, na sua pessoa como messias enviado por Deus; definitivamente, fé no poder salvador de Deus. Pois os milagres estavam em relação directa com a salvação proclamada pela boa nova do reino de Deus, presente na pessoa e no anúncio de Jesus. Daí a necessidade da fé nele.
- Milagres e libertação huniana. Cada milagre de Cristo proclama que ele é fonte de vida, esperança e libertação para o homem; porque o significado mais profundo dos milagres de Jesus radica no seu mistério pascal, na sua vitória sobre a morte por meio da sua ressurreição, que é o maior dos seus milagres.
Próximo da morte, João Baptista interrogou Jesus sobre a sua identidade messiânica. Cristo respondeu remetendo-se à sua pregação e milagres: “Os cegos vêem e os inválidos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a boa nova” (Mt 1 l,4s). Notemos que o anúncio do evangelho vai unido e equiparado às curas. Jesus tornava assim efectivo o programa messiânico de libertação integral do homem que foi traçado na sinagoga de Nazaré, e uniu assim indissoluvelmente evangelização e libertação humana, como sinais ambos da presença e eficácia salvadora do reino de Deus na sua pessoa.
Tal exemplo libertador assinala-nos um caminho de compromisso cristão com a libertação da dor dos nossos semelhantes em qualquer das suas manifestações: doença e fome, miséria e ignorância, opressão e escravidão. Por que outro meio, senão este, pode o mundo de hoje captar a presença de Cristo e a acção libertadora do seu evangelho entre os homens, nossos irmãos?
Obrigado, Pai, porque Jesus, curando os leprosos, mostrou-nos que o amor não marginaliza ninguém, antes regenera a pessoa, restabelecendo-a na sua dignidade.
Cada cura de Cristo fala-nos do seu coração sensível e confirma-nos na chegada do teu Reino e do teu amor.
Obrigado também por tantos homens e mulheres entregues à fascinante tarefa de amar os seus irmãos e libertar os pobres e marginalizados da sociedade: famintos, doentes, idosos, presos, exilados…
Sacia a sua fome de justiça e dá êxito ao seu empenho; e a nós impele-nos a seguir o exemplo de Jesus, ser\’indo a Cristo nos nossos irmãos mais abandonados.
SÁBADO
Mt 8,15-17: Em Israel não encontrei tanta fé.
Carregou com as nossas doenças
- Uma porta que se abre. Se ontem Jesus curava um leproso judeu, hoje é um centurião romano, um não judeu, um pagão, mais ainda, um membro do exército estrangeiro de ocupação, quem benefi cia da vida que brota de Cristo. Tudo graças à fé e à humildade do suplicante; a ponto de Jesus comentar: Em verdade vos digo que em Israel não encontrei em ninguém tanta fé.
O elogio desta fé do centurião, que é proveitosamente confrontada com a incredulidade do povo eleito, encerra um valor intencional que aponta para a abertura do evangelho aos não judeus. Assim, o evangelista Mateus, que escreve para judeo-cristãos, declara aberta a porta do Reino aos pagãos. Ponto importante na vida da primeira comunidade cristã, de origem judaica na sua maioria, que devia abrir o evangelho aos não judeus, como fez Cristo com o centurião romano. Igualmente a Igreja de hoje deve ser lugar aberto a todos e sinal de esperança e salvação para todo o homem e mulher hoje em dia. Assim se cumprirá a predição de Cristo: Virão muitos do oriente e do ocidente e sentar-se-ão com Abraão, Isaac e Jacob no Reino dos céus.
No relato de Mateus o centurião acorre em pessoa a falar com Jesus; no de Lucas, porém, fá-lo por meio de legados (7, lss). Mas em ambos os casos a mesma fé e confiança, a mesma humildade – quem sou eu para que entres debaixo do meu tecto? -, a mesma cura à distância. Este último pormenor não é algo habitual nos evangelhos. Jesus costumava curar na presença do doente, unindo a sua palavra ao contacto físico que transmitia o poder divino que dele emanava. Mas aqui a fé imensa do suplicante – tal como a da mulher cananeia, ambos pagãos (Mt 7,21 ss) – consegue um milagre totalmente extraordinário. Fundiu-se assim a eficácia da fé suplicante e da palavra toda poderosa.
- A humildade é pressuposto para a fé. Temos de dar uma margem de confiança a Deus, confiar em Jesus Cristo, que é a sua Palavra pessoal, e aceitar o claro-escuro da fé sem ceder à psicose de segurança palpável, que é sempre propícia aos mecanismos da magia e da superstição religiosas. Porque se torna tão difícil ao homem de hoje o acreditar, confiando em Deus e entregando-se incondicionalmente a Ele? Não pode haver fé verdadeira sem uma profunda humildade. O centuriãode Cafarnaum é modelo de ambas as virtudes. Todos
os grandes crentes e santos da história foram profundamente humildes diante de Deus e dos outros.
A nossa atitude lógica, realista e consequente diante de Deus deve ser a do soldado romano. Senhor, eu não sou digno. Assim rezava também o publicano da parábola: Senhor, tem compaixão de mim. Esta atitude é que nos merece o favor de Deus, pois o seu amor e salvação são sempre gratuitos e não se devem aos nossos méritos. A reflexão de Jesus: “Nem em Israel encontrei tanta fé”, é um aviso, se não uma acusação, para aqueles que são cristãos desde sempre.
De pouco nos serviria repetir as palavras do centurião em cada eucaristia antes de comungar, se não copiamos a sua disposição anímica: fé impregnada de humildade. Fé e humildade são duas virtudes que andam unidas. O que cré no Deus santo, quando se vê a si mesmo pecador e mesquinho, não pode deixar de exclamar com sinceridade: Senhor, eu não sou digno!
- O servo paciente. O evangelho de hoje, depois de dar nota da cura do criado do centurião romano e da sogra do apóstolo Pedro, anota sumariamente uma grande quantidade de curas de doentes por Jesus. E conclui: “Assim se cumpriu o que disse o profeta Isaías: Ele tomou as nossas doenças e carregou com as nossas enfermidades”. Alusão evidente ao servo paciente do Senhor que o profeta Isaías descreve. Se Cristo pode aliviar as pessoas dos seus males corporais, que são a consequência e a pena do pecado, é porque tomou sobre si a expiação dos pecados do homem.
Na primeira sexta-feira santa da história, pelas ruas de Jerusalém, tornou-se realidade a efígie patética do Varão de dores que carregou sobre si o nosso pecado e as nossas doenças; mas mediante a sua humilhação até à morte fomos todos curados. Da maldição da cruz vem a bênção de Deus para todo o que crê no poder do Crucificado, enquanto repete humildemente diante de Deus: Senhor, eu não sou digno, mas uma palavra tua bastará para me curar.
Bendizemos-te, Senhor, porque és capaz de mudar o pranto do que confia em ti em cânticos de alegria e esperança transbordantes.
Estamos atormentados e paralisados pela nossa maldade, mas basta uma palavra tua para que te louvemos com todos os que tu convidas para a festa do teu Reino. Ali puseste a mesa para os pobres da terra, sem reparar cm condições, raça ou situação social.
Não somos dignos das tuas bênçãos, mas tu amas-nos. Bendito sejas para sempre, Senhor!
Segunda-feira
Alt 8,18-22: Dois encontros de vocação.
O preço do seguimento
- Dois encontros de vocação. Intercalados na narração de vários milagres de Jesus que vimos lendo nestes dias, têm lugar dois breves relatos de vocação que vemos hoje. A um escriba ou doutor da lei mosaica que diz a Jesus: Seguir-te-ei para onde quer que vás, ele responde-lhe: “As raposas têm tocas e as aves do céu ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. Igualmente, a outro que já era seu discípulo e lhe pede: Deixa-me ir primeiro enterrar meu pai, Jesus diz-lhe: “Tu segue-me. Deixa que os mortos enterrem os seus mortos”.
Esta última exigência, superior ao dever sagrado de enterrar os próprios pais (ou acompanhá-los nos seus últimos dias), só se aplicava por lei ao sumo sacerdote e aos nazireus consagrados a Deus (Lv 21,11; Nm 6,6s). Mas Jesus é o “santo” de Deus por excelência e o sumo sacerdote da nova aliança’; por isso somente em relação com a missão de Cristo se entende esta sentença pouco “humanitária”.
Jesus não só apreciava o quarto mandamento, como inclusivamente denunciou as tradições rabínicas que o desvirtuavam, como a do corbã (Mc 7,9s). Ele não proíbe enterrar os mortos, mas encarece a urgência do seu próprio seguimento para escapar à morte total, que é a do espírito, não a do corpo. Acompanhar Jesus é seguir aquele que é a ressurreição e a vida. Por isso afirma: “Deixa que os mortos (espiritualmente) enterrem os seus mortos (fisicamente)”. Tu vai anunciar o reino de Deus, acrscenta Jesus (segundo Lucas 9,60).
O evangelho de hoje evidencia que o seguimento de Cristo tem um preço. Ser seu discípulo não se resume em aceitar a sua doutrina; supõe a participação na sua vida e a comunhão no seu destino de sofrimento e de alegria. A radicalidade da linguagem de Jesus nos dois encontros de vocação quer acentuar a urgência do Reino como referência básica do convite ao seu seguimento.
- A comunhão de destino com Jesus é algo extensivo a toda a vocação cristã. Cada crente recebe de Deus a chamada para a fé em Cristo e para o discipulado, para a conversão e para a santidade, para o amor e para o apostolado; e não de uma vez por todas, por exemplo no baptismo, mas repetidamente nos sacramentos da vida cristã, na proclamação da palavra, na comunidade de fé reunida no nome de
gunda-feira
Mt 7,1-5: Não julgueis e não sereis julgados.
O cisco 110 olho alheio
- Não condenar os outros. A partir do capítulo 7 de Mateus, que hoje começamos, o discurso da montanha parece tomar uma nova direcção, orientado mais em particular para os discípulos, isto é, para os membros da comunidade cristã de Mateus e de todos os tempos. “Não julgueis e não vos julgarão… A medida que usardes usá-la-ão .. Como podes dizer ao teu irmão: ‘Deixa-me tirar o cisco do teu olho’, tendo uma trave no teu?”.
O contraste exagerado entre o cisco no olho alheio e a trave no próprio pode reflectir um provérbio popular de então, pois a rápida observação das faltas dos outros, em contraste com a tolerância para as falhas do próprio carácter, é tema comum em muitos adágios de todas as culturas e idiomas.
Com a lição do evangelho de hoje Jesus pretende chamar a atenção dos seus discípulos para um perigo que os ronda: Constituirem-se em elite, crerem-se superiores e separarem-se dos outros, como os fariseus. Isso é o significado de fariseu: separado.
O sentido que tem aqui o verbo “julgar” não é simplesmente fazer- -se uma opinião, algo que dificilmente poderemos evitar, mas julgar duramente, ou seja, condenar os outros, como se diz na passagem paralela de Lucas: “Não julgueis e não sereis julgados; não condeneis e não sereis condenados; perdoai e sereis perdoados” (6,37).
- Três razões para não condenar. Não devemos julgar e condenar os outros por muitas razões, entre outras por estas três:
1a – O julgamento pertence a Deus e não a nós, porque só Deus conhece a fundo o coração do homem. Constituir-se em juiz dos outros é uma ousadia irresponsável. Deus aceita-nos e ama todos tal como somos, e olha-nos com amor de Pai que dissimula as faltas dos seus filhos, a quem vê através do seu próprio Filho, Cristo.
Se anteriormente, ao longo do discurso da montanha, Jesus falou do perdão das ofensas e do amor inclusivamente ao inimigo, para tentar aproximar-nos ao menos um pouco da perfeição de Deus, agora está apontando à imitação da sua misericórdia. Como diz o livro da Sahedoria, Deus compadece-se de todos e corrige os que caem para que se convertam e acreditem n’Ele (1 l,23ss).
2a – A medida que usarmos com os outros usá-la-ão connosco. Isso
não quer dizer que Deus – a quem não se menciona no texto por respeito – nos julgará com a nossa medida injusta e impiedosa. Esse não é o seu modo de proceder. Mas certamente quem age assim com os outros expõe-se a um julgamento mais severo para si mesmo.
Deus teria, digamos, duas medidas para o seu julgamento: uma de justiça, outra de misericórdia. Ele medir-nos-á com aquela que nós utilizarmos com os irmãos. E a mesma lição da parábola do devedor insolvente que é perdoado e não perdoa, ou a contida na petição do Pai nosso: Perdoa as nossas ofensas… O que condena o irmão auto- -exclui-se do perdão de Deus e cai sob a jurisdição da lei, que não deixará de o acusar e condenar como imperfeito que é.
3a – Todos somos imperfeitos, tanto e mais que os outros, ainda que, julgando-os com superioridade, os desprezemos. Tal atitude, desprovida de amor, provém da nossa própria cegueira que nos impede de ver os nossos defeitos. Manter conscientemente tal postura é hipocrisia astuta, cujo modelo no evangelho são escribas e fariseus.
É muito velho o costume de criticar os outros; assim pensamos jus- tificar-nos a nós como melhores. Mas a experiência demonstra que os mais críticos, os que julgam ser perfeitos, saber tudo e ter a melhor solução para qualquer problema, costumam ser os que menos fazem e levam aos outros.
Um olhar ao espelho, uma vista de olhos à nossa pequenez e insignificância, à nossa “trave” no olho, minimizará sem dúvida as falhas dos outros e far-nos-á mais tolerantes e acolhedores, pensando que os outros também têm que suportar-nos a nós. Conhecer as nossas próprias limitações, admiti-las e aceitá-las ensinar-nos-á a saber estar e viver com os outros. Assim caminharemos em verdade e simplicidade, com ânimo de companheirismo, tolerância e compreensão para com os outros sem os condenar.
Se Deus é optimista a respeito do homem e o ama apesar de tudo, o discípiulo de Cristo há-de ser o mesmo em relação aos seus irmãos. Este é um caminho mais seguro para a realização e a felicidade pessoal do que o engano da presunção.
Bendito sejas, Senlior Jesus. Tu nos disseste:
Não condeneis os outros e não sereis condenados.
Felizes os misericordiosos que desculpam, compreendem e aceitam o irmão tal como é, porque assim c o proceder de Deus connosco.
Cura-nos radicalmente da nossa hipocrisia
que vê o cisco do próximo e dissimula a trave própria.
Dá-nos, Senhor, olhos puros para ver o bem, isto é, a tua imagem, no rosto do irmão, para acreditar nos outros e para amar a vida com um coração grande como o teu. Amen.
Alt 7,6.12-14: Várias máximas de Jesus.
A porta para a vida
- Três máximas de Jesus. O texto evangélico de hoje reúne três máximas independentes de Jesus sobre as coisas santas, a regra de ouro e a porta estreita.
- “ – Não profanar as coisas santas: “Não deis aos cães o que é santo, nem atireis as vossas pérolas aos porcos; pisá-las-iam e logo se voltariam para vos despedaçar”. Talvez Jesus esteja a repetir um adágio O cão e o porco eram animais impuros para os judeus. As coisas santas podem ser os alimentos santificados pelo culto, ou a doutrina do evangelho e do Reino. É difícil precisar quem são essas pessoas não merecedoras das coisas santas; pode referir-se aos judeus hostis, como escribas e fariseus, ou, menos provavelmente, aos pagãos.
2.3 – Rcqra de ouro, assim chamada porque resume todo o ensinamento moral da lei no amor que procura o bem do próximo como o próprio: “Tratai os outros como quereis que eles vos tratem; nisto consiste a lei e os profetas”. É uma norma que tem paralelo tanto no judaísmo como nas antigas literaturas. A mais conhecida é a sua forma negativa, atribuída ao rabino Hilel (20 a.C.): “Não faças a outro o que não queres para ti. Isto é a lei; o resto é comentário”.
- a – Porta estreita que leva a vida: “Entrai pela porta estreita. Larga é a porta e espaçoso o caminho que leva à perdição, e muitos entram por eles. Que estreita é a porta e que apertado o caminho que leva à vida! E poucos os encontram”. Em Lucas esta máxima é a resposta de Jesus a uma pergunta que lhe é feita sobre se são poucos os que se salvarão (13,23). Pergunta que está ausente em Mateus para manter a continuidade artificial do discurso da montanha. A máxima reflecte a conhecida doutrina bíblica e sapiencial dos dois caminhos, que se repete na literatura apostólica, por exemplo na Didaché.
Alguns autores dão a esta máxima um valor ético: Entrar pela porta certa é produzir frutos, cumprindo a vontade do Pai mediante a prática da palavra de Jesus. Outros preferem uma interpretação mais directamente cristológica: É “um chamamento para seguir Cristo, particularmente Cristo sofredor, com todas as consequências morais e espirituais que esta obediência encerra. Esta interpretação está avalizada por todo o conjunto do evangelho no que tem de mais essencial: as chamadas ao arrependimento, à fé, a seguir Cristo” (P. Bonnard).
- A porta para a vida. Trata-se, pois, do caminho da cruz que conduz à porta apertada que dá passagem para a vida no reino de Deus. O proprio Jesus e essa porta para a vida: “Eu sou a porta; quem entrar por mim será saho” (Jo 10,9).
Perante a permissividade socio-moral de hoje em dia, a “porta estreita” de Jesus não é mpralismo intransigente, mas responsabilidade e lucidez dos que se esforçam por ser fiéis a Deus e aos princípios evangélicos: solidariedade, fraternidade e serviço ao irmão, em vez de egoísmo, agressividade e violência; controlo do consumismo em vez de idolatria do dinheiro e dos bens materiais; assimilação, enfim, do programa de santidade que Cristo expõe no discurso da montanha, cuja cobertura são as bem-aventuranças e cujo fundamento e motivação é a santidade de Deus a quem servimos: Sede perfeitos como o vosso Pai celestial é perfeito.
A chamada de Deus à santidade é para todos; vocação comum, embora diferenciada; universal, mas piuralista. Tender para a santidade cristã não é algo facultativo e opcional, reservado somente a alguns que consagram a sua vida a Deus e constituiriam uma classe aristocrática ou elite de cristãos de primeira categoria frente à grande massa de plebeus. Não; todo o discípulo de Cristo, e cada um segundo o seu estado, situação e carisma próprio, é chamado ã santidade em qualquer condição social e laborai: no matrimónio e na família, na vida consagrada, no trabalho de casa e do escritório, no hospital e no ensino, na oficina e 110 campo, por trás de um balcão, de um postigo ou de um volante.
E que fazer para sermos cristãos santos? Nada de espectacular: amar, servir e glorificar a Deus em todas as circunstâncias da vida, e amar os nossos irmãos como a nós mesmos. Nisso se resume toda a lei de Cristo, de que ele foi o exemplo mais perfeito, o caminho e a porta para a vida do Reino.
Obrigado, Pai nosso, porque nos destinaste a ser imagem de Jesus Cristo, teu Filho, de modo que ele é o primogénito entre muitos irmãos.
Ele é também a porta de entrada para a vida.
Faz-nos entender, Senhor, que a sua passagem estreita não é moralismo intransigente, mas libertação necessária antes que seja tarde e se feche a porta do Reino.
Concede-nos, Pai, responder à tua chamada: à nossa vocação cristã para a fidelidade plena.
Que o teu Espírito venha em ajuda da nossa debilidade, pedindo para nós o que nos convém. Amen.
Quarta-feira
Mt 7,15-20: Pelos seus frutos os conhecereis.
Pelo fruto se conhece a áivore
- Os falsos profetas. Partindo do aviso sobre os falsos profetas que se aproximam disfarçados de ovelhas, mas por dentro são lobos ferozes, Jesus remete-se às suas obras para os conhecer, tal como as árvores se conhecem pelos seus frutos. “As árvores sãs dão frutos sãos; as árvores más dão frutos maus”. Mediante este processo indutivo e experimental, Jesus previne contra o engano dos falsos profetas, pastores e doutores que pretendem falar à comunidade em nome de Deus. Embora a sua linguagem seja suave e mansa, o seu interior é egoísmo sem escrúpulos.
Como conhecê-los? Pela sua conduta, pelas suas obras; estas denunciam as suas verdadeiras intenções, como o fruto relativamente à árvore. Aviso e lição que são extensivos a todos os falsos discípulos de Jesus, os falsos irmãos, como se vê na passagem paralela de Lucas, em que Cristo se refere a todo o seu seguidor. Se bem que em Lucas os frutos, que em Mateus significam as obras, apontam para as palavras que brotam do coração: “O que tira do coração fala-o a boca” (Lc 6,45).
“A árvore que não dá boin fruto corta-se e lança-se ao fogo”. Esta consideração sobre o destino da árvqra má, imagem do falso profeta, liga com a pregação de João Baptista. Este denunciou o disfarce dos fariseus e saduceus: fingindo conversão diante do povo, que venerava o profeta autêntico que era João, acorriam ao seu baptismo sem vontade de se emendarem. “Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da ira iminente? Dai o fruto que a conversão exige. O machado já está posto à raiz das árvores, e a árvore que não dá bom fruto será cortada e lançada ao fogo” (Mt 3,7s).
O tema dos falsos profetas teve muita importância nas primeiras comunidades cristãs, como vemos pelos escritos de então; e continua tendo hoje em dia. Como distinguir o verdadeiro profeta, o santo, o carismático? O critério evangélico de hoje será sempre de permanente actualidade e avalizado pela experiência: o fruto que produzem com a sua pessoa, palavra e conduta. S. Paulo, depois de enumerar exaustivamente as obras da carne, apresenta uma lista de nove frutos do Espírito de Deus: amor, alegria e paz, compreensão, serviço e bondade, lealdade, amabilidade e domínio de si (G1 5,22).
- Os frutos do coração. Temos de ir à raiz e ao fruto da árvore para não andarmos pela rama; isto é, temos de descer ao fundo do nosso coração para descobrir a sua maldade ou a sua bondade, a sua mentira ou a sua verdade, a sua esterilidade ou a sua fecundidade. Porque nem tudo o que brilha é ouro.
E quais são os frutos pelos quais se conhece o discípulo de Jesus? Os que assinala o discurso da montanha que vimos meditando nestes dias: a prática das bem-aventuranças, o perdão e o amor a todos, incluindo o inimigo, o dar sem pedir nem esperar nada em troca, a esmola, o desprendimento, a oração, o não julgar e condenar os outros constituindo-nos em guias improvisados, censores moralizantes e fiscais rigorosos dos outros sem ter convertido o próprio coração ou, pelo menos, tentar uma melhoria.
O autêntico discípulo de Jesus, o que é cristão e profeta de verdade, o que se sabe incorporado em Cristo pelo baptismo e pela obediência da fé, não deixará de produzir frutos maduros porque não poderá deixar de pensar, falar e actuar como Jesus. Mas da árvore doente e do coração que é um baldio agreste não podem sair senão frutos maus, palavras e acções estéreis; porque o que trazemos dentro é o que deixamos transparecer e produzimos.
Por isso, infelizmente, na palavra e actuação de tantos cristãos de número transvasa-se também o vazio interior e a imaturidade religiosa, evidentes nos seus critérios infantis e egoístas, nas suas críticas destrutivas, azedas e intolerantes, assim como no seu comportamento farisaico que os induz ao “cumpro-e-minto”, ou ainda a constituirem- -se em falsos profetas, guias cegos de outros cegos.
Necessitamos de um processo prévio de interiorização para que a qualidade e a força da seiva evengélica se note nos nossos frutos diários. Mas como, sem oração nem contacto com Deus, sem experiência do seu mistério, sem escuta e assimilação da sua palavra, sem diálogo pessoal com ele no silêncio do nosso coração?
Louvamos-te, Pai, porque Jesus nos ensinou a conhecer a fundo o nosso coração pelos seus frutos, pois o que temos dentro é o que deixamos transparecer: maldade ou bondade, mentira ou verdade, egoísmo ou amor.
Não permitas que o vazio interior do coração converta a nossa vida num árido baldio.
Que a seiva do teu Espírito dê fruto em nós mediante a prática das bem-aventuranças e a escuta da tua palavra em oração e silêncio.
Porque é no teu amor, Senhor, e na tua graça que a nossa casa tem alicerce e consistência.
Alt 7,21-29: A casa sobre rocha ou sobre areia.
Obras são amores
- Passe de entrada para o reino de Deus. O evangelho deste dia conclui o discurso da montanha, que vimos lendo desde segunda-feira da décima semana. Hoje Jesus aponta uma condição indispensável para entrar no Reino: cumprir a vontade de Deus. Este é o aval de pertença pelo qual ele nos reconhece como filhos seus e discípulos de Jesus. Não basta confessar Cristo, somente de palavra, como Senhor glorioso e ressuscitado de entre os mortos; há que juntar o cumprimento da vontade do Pai. Só assim a nossa justiça, santidade e fidelidade serão maiores que as dos escribas e fariseus, como Jesus desejava.
Para ilustrar a necessidade desta fé prática, a fé que nos salva, a fé que actua pela caridade (G1 5,6), Jesus expõe a parábola das duas casas, construídas uma sobre rocha e outra sobre areia. O verdadeiro discípulo de Cristo é o homem sábio que edifica sobre rocha, e o falso é o homem néscio que constrói a sua casa sobre areia movediça. O primeiro escuta e cumpre a palavra do Senhor; o segundo escuta-a mas não a põe em prática. Daí a sua ruína e desqualificação, porque a fé sem obras é estéril; mais ainda, está morta (Tg 2,17.20). “Obras são amores, e não boas razões”, reza o provérbio.
O “guardar os mandamentos” dos antigos catecismos continua em vigor, mas enriquecido com um maior substrato bíblico. Deus nunca começa exigindo, mas dando. O imperativo cristão funda-se no indicativo do dom de Deus, que nos torna seus filhos, homens e mulheres novos pelo baptismo em Cristo morto e ressuscitado. O primeiro é sempre o amor de Deus; depois, logicamente, torna-se urgente uma resposta pessoal mediante a conversão do coração e a fidelidade quotidiana ao Senhor.
Desta maneira uniremos fé e obras, crenças e condutas, e evitaremos um escolho frequente, causa de desprestígio e antitestemunho cristão: o divórcio entre fé e vida por parte dos que se confessam crentes e praticantes.
- O exemplo de Cristo, para evitar enganos. Cumprir a vontade de Deus supõe conhecer o querer divino. Onde encontrar um guia seguro que nos livre de ilusões e subjectivismos? Na pessoa e conduta de Jesus de Nazaré, que pôde afirmar: O meu alimento é fazer a vontade do Pai que me enviou (Jo 4,34). E no momento da prova suprema, na sua paixão, repetia: Pai, não se faça a minha vontade, mas a tua (Lc 22,42). Portanto, seguindo o exemplo de Cristo, acertaremos. Ele falou e actuou com autoridade.
No discurso da montanha que vimos em fragmentos diários, achamos um excelente resumo do seu pensamento e das atitudes básicas de quem se propõe ser seu discípulo. Assimilando o espírito das bem-aventuranças, o cristão deve ser luz do mundo e sal da terra, deve ter fome da nova justiça do reino de Deus, deve ser capaz de perdoar amando todos, inclusivamente o inimigo, e deve servir a Deus e não ao dinheiro. Assim cumpriremos seguramente a vontade divina.
A palavra de Deus é eficaz como a chuva e a neve, e penetrante como espada de dois gumes. Por isso a palavra de Deus pede uma resposta nossa; mais ainda, lê o fundo do nosso coração e julga-nos. Uma meditação diária e amorosa da palavra convertê-la-á em eixo da nossa vida cristã e em elemento constitutivo e nuclear da nossa estrutura pessoal.
Temos uma certa tendência para suavizar as afirmações categóricas de Jesus, qualificando-as de radicalismo verbal ou literário. Uma delas é a do evangelho de hoje: “Nem todo aquele que me diz ‘Senhor, Senhor’ entrará no Reino dos céus, inas o que cumpre a vontade de meu Pai que está nos céus”. Pode alguém inclusivamente realizar milagres em nome de Cristo e não ser reconhecido por ele como seu; porque não são os lábios, inas o coração, a vontade e as obras que contam para conseguir o passe de entrada no reino de Deus.
Não podemos hoje pôr de lado as sérias interrogações que nos coloca a palavra de Jesus: A que classe de cristãos pertencemos? Somos a casa sobre rocha ou sobre areia? Amar a Deus e os irmãos é o quadro completo da vontade divina sobre cada um de nós, que queremos construir solidamente sobre a rocha e pedra angular que é Cristo.
A tua palavra, Senhor, é eficaz e julga-nos.
Bem-aventurado o que a escuta e a cumpre!
Será casa edificada sobre rocha, árvore junto do açude.
Pois a tua lei, Senhor, é peifeita e é descanso da alma; o teu preceito é sempre fiel e instrui o ignorante, os teus mandatos são rectos e alegram o nosso caminho, a tua norma é límpida e dá luz aos olhos do cego.
Os teus mandamentos, Senhor, são inteiramente justos, mais preciosos que o ouro, mais doces que o mel.
Por isso a tua lei é a minha herança, a alegria da minha vida.
Inclina o meu coração para cumprir cabalmente a tua vontade.
Amen.
Sexta-feira
Mt 8,1-4: Se queres, podes limpar-me.
Os milagres da fé
- Um diálogo de fé. O evangelista Mateus, depois de apresentar Jesus como doutor e novo legislador no discurso da montanha (cc. 5- 7), mostra-o como curador numa série narrativa de dez milagres, agrupados por tríades que se concluem com uma passagem doutrinal (cc. 8-9). Assim completa a imagem de Cristo, profeta e homem de Deus, poderoso em obras e palavras.
O evangelho de hoje relata o primeiro milagre da primeira tríade: cura de um leproso. A cena tem lugar “ao descer Jesus da montanha”. Aproximou-se dele o leproso e disse-lhe: Senhor, se queres podes purificar- me. Jesus estendeu a mão e tocou-o, dizendo: Quero. Fica purificado! E imediatamente ficou curado da lepra (cf Mc l,40ss; Lc 5,12ss).
Importa destacar que a cura é precedida de um breve diálogo que expressa a fé do agraciado. O leproso, de joelhos diante de Jesus, chama-o “Senhor”, título que a primitiva comunidade cristã deu a Cristo ressuscitado. A fé pascal transvasou-se para a redacção evangélica, posterior aos factos narrados. Mas a fé do doente é evidente: Se queres, podes limpar-me. Isto demonstra-nos, uma vez mais, que a fé era condição indispensável para os milagres de Jesus, sobre os quais reflectimos noutra ocasião sob a perspectiva libertadora de Deus (ver quarta-feira da vigésima segunda semana).
- Condição prévia. Os milagres, mais que apoiar a fé em Cristo, brotavam da fé prévia nele. Era a fé dos que lhe suplicavam e confiavam no poder de um homem de Deus que suscitava a intervenção extraordinária da energia divina que residia na pessoa, palavra e gestos de Jesus de Nazaré. Contudo, também é certo que, num segundo momento, o milagre vinha confirmar e afiançar essa fé inicial, como anota o evangelista João depois de relatar a conversão da água em vinho nas bodas de Caná: “Jesus manifestou a sua glória e cresceu a fé dos seus discípulos nele” (2,11).
A tal ponto a fé era pressuposto essencial e condição indispensável para os milagres, que onde Jesus não encontrava fé, como sucedeu com os seus conterrâneos de Nazaré, “não podia” fazer nenhum milagre (Mc 6,5). Uma e outra vez Cristo repete às pessoas agraciadas por ele com um favor prodigioso: A tua fé te curou, a tua fé te salvou. O apóstolo Pedro foi capaz de caminhar sobre as ondas encrespadas do mar da
Galileia enquanto durou a fé; quando duvidou, começou a afundar-se. Em certa ocasião em que os discípulos tentaram curar um endemoninhado epiléptico sem o conseguirem, Jesus atribui-o à sua falta de fé, que se tivesse sido como um grão de mostarda teria bastado (Mt 17,19ss).
A fé que Cristo requeria como premissa para os seus milagres era uma fé, pelo menos inicial, na sua pessoa como messias enviado por Deus; definitivamente, fé no poder salvador de Deus. Pois os milagres estavam em relação directa com a salvação proclamada pela boa nova do reino de Deus, presente na pessoa e no anúncio de Jesus. Daí a necessidade da fé nele.
- Milagres e libertação huniana. Cada milagre de Cristo proclama que ele é fonte de vida, esperança e libertação para o homem; porque o significado mais profundo dos milagres de Jesus radica no seu mistério pascal, na sua vitória sobre a morte por meio da sua ressurreição, que é o maior dos seus milagres.
Próximo da morte, João Baptista interrogou Jesus sobre a sua identidade messiânica. Cristo respondeu remetendo-se à sua pregação e milagres: “Os cegos vêem e os inválidos andam, os leprosos ficam limpos e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e aos pobres é anunciada a boa nova” (Mt 1 l,4s). Notemos que o anúncio do evangelho vai unido e equiparado às curas. Jesus tornava assim efectivo o programa messiânico de libertação integral do homem que foi traçado na sinagoga de Nazaré, e uniu assim indissoluvelmente evangelização e libertação humana, como sinais ambos da presença e eficácia salvadora do reino de Deus na sua pessoa.
Tal exemplo libertador assinala-nos um caminho de compromisso cristão com a libertação da dor dos nossos semelhantes em qualquer das suas manifestações: doença e fome, miséria e ignorância, opressão e escravidão. Por que outro meio, senão este, pode o mundo de hoje captar a presença de Cristo e a acção libertadora do seu evangelho entre os homens, nossos irmãos?
Obrigado, Pai, porque Jesus, curando os leprosos, mostrou-nos que o amor não marginaliza ninguém, antes regenera a pessoa, restabelecendo-a na sua dignidade.
Cada cura de Cristo fala-nos do seu coração sensível e confirma-nos na chegada do teu Reino e do teu amor.
Obrigado também por tantos homens e mulheres entregues à fascinante tarefa de amar os seus irmãos e libertar os pobres e marginalizados da sociedade: famintos, doentes, idosos, presos, exilados…
Sacia a sua fome de justiça e dá êxito ao seu empenho; e a nós impele-nos a seguir o exemplo de Jesus, ser\’indo a Cristo nos nossos irmãos mais abandonados.
SÁBADO
Mt 8,15-17: Em Israel não encontrei tanta fé.
Carregou com as nossas doenças
- Uma porta que se abre. Se ontem Jesus curava um leproso judeu, hoje é um centurião romano, um não judeu, um pagão, mais ainda, um membro do exército estrangeiro de ocupação, quem benefi cia da vida que brota de Cristo. Tudo graças à fé e à humildade do suplicante; a ponto de Jesus comentar: Em verdade vos digo que em Israel não encontrei em ninguém tanta fé.
O elogio desta fé do centurião, que é proveitosamente confrontada com a incredulidade do povo eleito, encerra um valor intencional que aponta para a abertura do evangelho aos não judeus. Assim, o evangelista Mateus, que escreve para judeo-cristãos, declara aberta a porta do Reino aos pagãos. Ponto importante na vida da primeira comunidade cristã, de origem judaica na sua maioria, que devia abrir o evangelho aos não judeus, como fez Cristo com o centurião romano. Igualmente a Igreja de hoje deve ser lugar aberto a todos e sinal de esperança e salvação para todo o homem e mulher hoje em dia. Assim se cumprirá a predição de Cristo: Virão muitos do oriente e do ocidente e sentar-se-ão com Abraão, Isaac e Jacob no Reino dos céus.
No relato de Mateus o centurião acorre em pessoa a falar com Jesus; no de Lucas, porém, fá-lo por meio de legados (7, lss). Mas em ambos os casos a mesma fé e confiança, a mesma humildade – quem sou eu para que entres debaixo do meu tecto? -, a mesma cura à distância. Este último pormenor não é algo habitual nos evangelhos. Jesus costumava curar na presença do doente, unindo a sua palavra ao contacto físico que transmitia o poder divino que dele emanava. Mas aqui a fé imensa do suplicante – tal como a da mulher cananeia, ambos pagãos (Mt 7,21 ss) – consegue um milagre totalmente extraordinário. Fundiu-se assim a eficácia da fé suplicante e da palavra toda poderosa.
- A humildade é pressuposto para a fé. Temos de dar uma margem de confiança a Deus, confiar em Jesus Cristo, que é a sua Palavra pessoal, e aceitar o claro-escuro da fé sem ceder à psicose de segurança palpável, que é sempre propícia aos mecanismos da magia e da superstição religiosas. Porque se torna tão difícil ao homem de hoje o acreditar, confiando em Deus e entregando-se incondicionalmente a Ele? Não pode haver fé verdadeira sem uma profunda humildade. O centuriãode Cafarnaum é modelo de ambas as virtudes. Todos
os grandes crentes e santos da história foram profundamente humildes diante de Deus e dos outros.
A nossa atitude lógica, realista e consequente diante de Deus deve ser a do soldado romano. Senhor, eu não sou digno. Assim rezava também o publicano da parábola: Senhor, tem compaixão de mim. Esta atitude é que nos merece o favor de Deus, pois o seu amor e salvação são sempre gratuitos e não se devem aos nossos méritos. A reflexão de Jesus: “Nem em Israel encontrei tanta fé”, é um aviso, se não uma acusação, para aqueles que são cristãos desde sempre.
De pouco nos serviria repetir as palavras do centurião em cada eucaristia antes de comungar, se não copiamos a sua disposição anímica: fé impregnada de humildade. Fé e humildade são duas virtudes que andam unidas. O que cré no Deus santo, quando se vê a si mesmo pecador e mesquinho, não pode deixar de exclamar com sinceridade: Senhor, eu não sou digno!
- O servo paciente. O evangelho de hoje, depois de dar nota da cura do criado do centurião romano e da sogra do apóstolo Pedro, anota sumariamente uma grande quantidade de curas de doentes por Jesus. E conclui: “Assim se cumpriu o que disse o profeta Isaías: Ele tomou as nossas doenças e carregou com as nossas enfermidades”. Alusão evidente ao servo paciente do Senhor que o profeta Isaías descreve. Se Cristo pode aliviar as pessoas dos seus males corporais, que são a consequência e a pena do pecado, é porque tomou sobre si a expiação dos pecados do homem.
Na primeira sexta-feira santa da história, pelas ruas de Jerusalém, tornou-se realidade a efígie patética do Varão de dores que carregou sobre si o nosso pecado e as nossas doenças; mas mediante a sua humilhação até à morte fomos todos curados. Da maldição da cruz vem a bênção de Deus para todo o que crê no poder do Crucificado, enquanto repete humildemente diante de Deus: Senhor, eu não sou digno, mas uma palavra tua bastará para me curar.
Bendizemos-te, Senhor, porque és capaz de mudar o pranto do que confia em ti em cânticos de alegria e esperança transbordantes.
Estamos atormentados e paralisados pela nossa maldade, mas basta uma palavra tua para que te louvemos com todos os que tu convidas para a festa do teu Reino. Ali puseste a mesa para os pobres da terra, sem reparar cm condições, raça ou situação social.
Não somos dignos das tuas bênçãos, mas tu amas-nos. Bendito sejas para sempre, Senhor!
Segunda-feira
Alt 8,18-22: Dois encontros de vocação.
O preço do seguimento
- Dois encontros de vocação. Intercalados na narração de vários milagres de Jesus que vimos lendo nestes dias, têm lugar dois breves relatos de vocação que vemos hoje. A um escriba ou doutor da lei mosaica que diz a Jesus: Seguir-te-ei para onde quer que vás, ele responde-lhe: “As raposas têm tocas e as aves do céu ninhos, mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça”. Igualmente, a outro que já era seu discípulo e lhe pede: Deixa-me ir primeiro enterrar meu pai, Jesus diz-lhe: “Tu segue-me. Deixa que os mortos enterrem os seus mortos”.
Esta última exigência, superior ao dever sagrado de enterrar os próprios pais (ou acompanhá-los nos seus últimos dias), só se aplicava por lei ao sumo sacerdote e aos nazireus consagrados a Deus (Lv 21,11; Nm 6,6s). Mas Jesus é o “santo” de Deus por excelência e o sumo sacerdote da nova aliança’; por isso somente em relação com a missão de Cristo se entende esta sentença pouco “humanitária”.
Jesus não só apreciava o quarto mandamento, como inclusivamente denunciou as tradições rabínicas que o desvirtuavam, como a do corbã (Mc 7,9s). Ele não proíbe enterrar os mortos, mas encarece a urgência do seu próprio seguimento para escapar à morte total, que é a do espírito, não a do corpo. Acompanhar Jesus é seguir aquele que é a ressurreição e a vida. Por isso afirma: “Deixa que os mortos (espiritualmente) enterrem os seus mortos (fisicamente)”. Tu vai anunciar o reino de Deus, acrscenta Jesus (segundo Lucas 9,60).
O evangelho de hoje evidencia que o seguimento de Cristo tem um preço. Ser seu discípulo não se resume em aceitar a sua doutrina; supõe a participação na sua vida e a comunhão no seu destino de sofrimento e de alegria. A radicalidade da linguagem de Jesus nos dois encontros de vocação quer acentuar a urgência do Reino como referência básica do convite ao seu seguimento.
- A comunhão de destino com Jesus é algo extensivo a toda a vocação cristã. Cada crente recebe de Deus a chamada para a fé em Cristo e para o discipulado, para a conversão e para a santidade, para o amor e para o apostolado; e não de uma vez por todas, por exemplo no baptismo, mas repetidamente nos sacramentos da vida cristã, na proclamação da palavra, na comunidade de fé reunida no nome de